sábado, 17 de março de 2018

Astralízia.

Mais um trecho de Astralízia... (continuação)

                     


Ele corria pela rua, tropeçando pelo asfalto, tentando pegar o ônibus, acenando com a mão em desespero, segurando as poucas coisas que levava e que já podia ver espalhadas pelo chão, assim como ele próprio. Nem mesmo com toda a encenação, o desgraçado do motorista não o esperou. Sentia irritação, vontade férrea de matar alguém, mas ficou ali no ponto, apenas esperando, vendo os minutos passarem e seu novo emprego ir pelo ralo. Era inadmissível que ousasse chegar atrasado ao seu primeiro dia. Fora tão difícil achá-lo e consegui-lo, mediante o número de pessoas na fila.
“Eu não deveria ter dormido”. — pensava. Na realidade, ele não deveria ter seguido as ideias festeiras de Getúlio que, ao descobrir que ele estava empregado, resolvera comemorar.
— “É o seu primeiro emprego!” — Insistira ele, com aquele sorriso que não deixava ninguém dizer não.
Assim foram todos para uma boate gay, cheios de alegria e aptos a ter uma noite muito boa. Ele, Getúlio, Marcel e Lídia, a única mulher entre eles e a representante viva de todas as mães.
Sim, ele é gay.
Gay com todas as letras e com delineador, com as unhas pintadas de vermelho, pelo menos as unhas dos pés. Às vezes, até um batom. Adora sua vida. Não tem medo do que é. Ele e seus amigos sempre foram fortes e decididos.
Entretanto, naquela manhã, suas unhas pintadas estavam escondidas e seus olhos lindos, azuis, sem o seu delineador. Seus cabelos ruivos que sempre usava espetados, agora caiam de lado, penteado. Como dissera Lídia, ele estava apresentável para o seu primeiro dia. E o maldito motorista não o esperou.
Assim que colocou os pés na Rua Maria Figueiredo, ainda lhe faltavam cinco minutos para iniciar seu turno. A firma ficava no terceiro andar e a fila do elevador estava enorme, fazendo voltas. Engolindo em seco e, sem pensar duas vezes, pegou as escadas. Na correria quase deu um encontrão com um cara alto, estranho. Ele descia os degraus de dois em dois, passando pelas pessoas sem se importar se tropeçava nelas e sem pedir sequer desculpas. Ele não se deteve a ficar observando o fulano, não tinha tempo.
Antes de entrar, se ajeitou, correu as mãos nas suas roupas, viu se tudo estava certo e respirando profundamente, dizendo que tudo ia dar certo, avançou. Todos o olharam com atenção, deu um sorriso contido e postou-se diante daquele que seria seu chefe a partir daquele momento.
— Senhor Castro!
Sim, este é ele: Theodoro Castro Filho.
— Bem na hora...
— Sim, senhor.
Havia salvado o seu emprego.
Theo, como gostava de ser chamado, desceu pelo elevador e assim que saiu do prédio, suspirou aliviado. Sentia-se realizado. Seu primeiro dia não fora difícil, não como ele acreditava. Todos o trataram bem, até mesmo o velho ranzinza que na primeira vez que o vira, apenas resmungara algumas palavras em sua direção.
Olhou em volta e seguiu em direção a Av. Paulista. Pegaria o metro até certo ponto e então, correria atrás do ônibus. Nada atingiria o seu bom humor.
As ruas estavam cheias de pessoas saindo do trabalho, em retorno para suas casas, assim como ele. O metro estava entupido, mal conseguiu entrar no vagão. Se espremendo, acabou ficando entre uma senhora e um velho de cara sacana, com um sorriso diabólico na face, um olhar que lhe dizia que queria encrenca, e com ele. Não deu atenção, mantendo a cabeça baixa, com o fone nos ouvidos, escutando música.
Saiu do vagão cuspido e seguiu a onda de seres humanos até a catraca que continuava ainda agrupada em direção à saída. Assim que se viu livre daquela multidão, aspirou o ar profundamente e seguiu para a fila do ônibus que já dava voltas na praça. Olhou desolado. Não havia nem mesmo um ônibus parado no ponto. Aquilo duraria horas. Ele sabia que tinha um shopping próximo. Sem discutir, foi naquela direção. Preferia perder suas horas vendo as vitrines, a ficar em uma fila horrível.
Já batia a meia-noite quando Theo chegou à rua onde morava. Ela estava estranhamente escura, com as luzes apagadas. Enchendo-se de coragem, avançou. Sentiu os cabelos arrepiarem, mesmo assim persistiu em seu caminho. Estava louco para tomar um banho, comer algo e dormir. Então começou ouvir passos. Deu uma espiada, não vindo ninguém. Sacudiu-se e, com uma risadinha, avançou com mais pressa. Estava ficando paranoico.
— Devem ser os meus passos que estou ouvindo...
Mas sabia que não eram.
Não era a primeira vez que coisas estranhas aconteciam com ele. Parou finalmente à porta de seu prédio e, antes de entrar, ainda deu uma olhada pela rua. Não havia viva alma, nem mesmo os ratos costumeiros. Estranho. Com o coração batendo aflito, subiu as escadas e só então se lembrou do homem a descer feito um louco na firma. A sensação foi de pânico, como se ele estivesse ali, apenas o esperando. Fixou seus olhos acima, no corredor que ainda tinha que transpor. Estremeceu, podia ver uma sombra em meio à tênue luz que ainda iluminava as escadas. Sabia que corria perigo. Sentiu seus pés tomando vida própria, pronto a correr. Virou-se e não esperou, nem mesmo pensou. Assim que se viu à entrada de seu prédio, voou para a porta e para a rua, não parando de correr.
Já eram duas horas quando Theo se deteve a frente da delegacia. Tinha, durante todo o caminho, lutado contra a ideia de estar ali. Iriam tratá-lo como louco. Pior, como drogado e sua vida seria jogada no lixo, outra vez. Balançando a cabeça retornou no caminho, pegando o celular e procurando o número de Lídia. Ela o receberia como uma mãe, sempre o fizera.
Ajeitando as coisas, já aliviado, começou a caminhar pela rua. Sabia que não haveria ônibus àquela hora, contudo Lídia lhe dissera que o pegaria na praça. Não lhe contara o que havia acontecido e ela não exigira isto dele, apenas estava pronta a ajudá-lo. Sentou-se em um dos bancos desocupado pelos mendigos, pensando se o que acontecera era verdade ou fruto de sua mente doentia. Ficou a lembrar de cada detalhe, aguçando o seu desespero, assim como a sensação de que estava, novamente, cercado. Ergueu a cabeça olhando ao redor.
— Onde estão os mendigos? — começou a se perguntar, apavorado. — Lídia?
A praça estava silenciosa. As luzes que antes estavam acessas, todas apagadas. A escuridão predominava. Theo ergueu-se e examinou cada canto, nada. Sentia seu corpo estranho, arrepiado, mas o medo havia ido embora. Então viu os faróis do carro que, provavelmente, era de Lídia. Estava grato por ter uma amiga tão dedicada.
Lídia deteve o carro chamando-o com um gesto de mão.
Theo correu naquela direção com um sorriso grato, acenando satisfeito.
Então, tudo aconteceu.
                                                                            
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