Ele
corria pela rua, tropeçando pelo asfalto, tentando pegar o ônibus, acenando com
a mão em desespero, segurando as poucas coisas que levava e que já podia ver
espalhadas pelo chão, assim como ele próprio. Nem mesmo com toda a encenação, o
desgraçado do motorista não o esperou. Sentia irritação, vontade férrea de
matar alguém, mas ficou ali no ponto, apenas esperando, vendo os minutos
passarem e seu novo emprego ir pelo ralo. Era inadmissível que ousasse chegar
atrasado ao seu primeiro dia. Fora tão difícil achá-lo e consegui-lo, mediante
o número de pessoas na fila.
“Eu
não deveria ter dormido”. — pensava. Na realidade, ele não deveria ter seguido
as ideias festeiras de Getúlio que, ao descobrir que ele estava empregado,
resolvera comemorar.
—
“É o seu primeiro emprego!” — Insistira ele, com aquele sorriso que não deixava
ninguém dizer não.
Assim
foram todos para uma boate gay, cheios de alegria e aptos a ter uma noite muito
boa. Ele, Getúlio, Marcel e Lídia, a única mulher entre eles e a representante
viva de todas as mães.
Sim,
ele é gay.
Gay
com todas as letras e com delineador, com as unhas pintadas de vermelho, pelo
menos as unhas dos pés. Às vezes, até um batom. Adora sua vida. Não tem medo do
que é. Ele e seus amigos sempre foram fortes e decididos.
Entretanto,
naquela manhã, suas unhas pintadas estavam escondidas e seus olhos lindos,
azuis, sem o seu delineador. Seus cabelos ruivos que sempre usava espetados,
agora caiam de lado, penteado. Como dissera Lídia, ele estava apresentável para
o seu primeiro dia. E o maldito motorista não o esperou.
Assim
que colocou os pés na Rua Maria Figueiredo, ainda lhe faltavam cinco minutos
para iniciar seu turno. A firma ficava no terceiro andar e a fila do elevador
estava enorme, fazendo voltas. Engolindo em seco e, sem pensar duas vezes,
pegou as escadas. Na correria quase deu um encontrão com um cara alto, estranho.
Ele descia os degraus de dois em dois, passando pelas pessoas sem se importar
se tropeçava nelas e sem pedir sequer desculpas. Ele não se deteve a ficar
observando o fulano, não tinha tempo.
Antes
de entrar, se ajeitou, correu as mãos nas suas roupas, viu se tudo estava certo
e respirando profundamente, dizendo que tudo ia dar certo, avançou. Todos o
olharam com atenção, deu um sorriso contido e postou-se diante daquele que
seria seu chefe a partir daquele momento.
—
Senhor Castro!
Sim,
este é ele: Theodoro Castro Filho.
—
Bem na hora...
—
Sim, senhor.
Havia
salvado o seu emprego.
Theo,
como gostava de ser chamado, desceu pelo elevador e assim que saiu do prédio,
suspirou aliviado. Sentia-se realizado. Seu primeiro dia não fora difícil, não
como ele acreditava. Todos o trataram bem, até mesmo o velho ranzinza que na
primeira vez que o vira, apenas resmungara algumas palavras em sua direção.
Olhou
em volta e seguiu em direção a Av. Paulista. Pegaria o metro até certo ponto e
então, correria atrás do ônibus. Nada atingiria o seu bom humor.
As
ruas estavam cheias de pessoas saindo do trabalho, em retorno para suas casas,
assim como ele. O metro estava entupido, mal conseguiu entrar no vagão. Se
espremendo, acabou ficando entre uma senhora e um velho de cara sacana, com um
sorriso diabólico na face, um olhar que lhe dizia que queria encrenca, e com
ele. Não deu atenção, mantendo a cabeça baixa, com o fone nos ouvidos,
escutando música.
Saiu
do vagão cuspido e seguiu a onda de seres humanos até a catraca que continuava
ainda agrupada em direção à saída. Assim que se viu livre daquela multidão,
aspirou o ar profundamente e seguiu para a fila do ônibus que já dava voltas na
praça. Olhou desolado. Não havia nem mesmo um ônibus parado no ponto. Aquilo
duraria horas. Ele sabia que tinha um shopping próximo. Sem discutir, foi naquela
direção. Preferia perder suas horas vendo as vitrines, a ficar em uma fila horrível.
Já
batia a meia-noite quando Theo chegou à rua onde morava. Ela estava
estranhamente escura, com as luzes apagadas. Enchendo-se de coragem, avançou.
Sentiu os cabelos arrepiarem, mesmo assim persistiu em seu caminho. Estava
louco para tomar um banho, comer algo e dormir. Então começou ouvir passos. Deu
uma espiada, não vindo ninguém. Sacudiu-se e, com uma risadinha, avançou com
mais pressa. Estava ficando paranoico.
—
Devem ser os meus passos que estou ouvindo...
Mas
sabia que não eram.
Não
era a primeira vez que coisas estranhas aconteciam com ele. Parou finalmente à
porta de seu prédio e, antes de entrar, ainda deu uma olhada pela rua. Não
havia viva alma, nem mesmo os ratos costumeiros. Estranho. Com o coração
batendo aflito, subiu as escadas e só então se lembrou do homem a descer feito
um louco na firma. A sensação foi de pânico, como se ele estivesse ali, apenas
o esperando. Fixou seus olhos acima, no corredor que ainda tinha que transpor.
Estremeceu, podia ver uma sombra em meio à tênue luz que ainda iluminava as escadas.
Sabia que corria perigo. Sentiu seus pés tomando vida própria, pronto a correr.
Virou-se e não esperou, nem mesmo pensou. Assim que se viu à entrada de seu
prédio, voou para a porta e para a rua, não parando de correr.
Já
eram duas horas quando Theo se deteve a frente da delegacia. Tinha, durante
todo o caminho, lutado contra a ideia de estar ali. Iriam tratá-lo como louco.
Pior, como drogado e sua vida seria jogada no lixo, outra vez. Balançando a
cabeça retornou no caminho, pegando o celular e procurando o número de Lídia.
Ela o receberia como uma mãe, sempre o fizera.
Ajeitando
as coisas, já aliviado, começou a caminhar pela rua. Sabia que não haveria
ônibus àquela hora, contudo Lídia lhe dissera que o pegaria na praça. Não lhe
contara o que havia acontecido e ela não exigira isto dele, apenas estava
pronta a ajudá-lo. Sentou-se em um dos bancos desocupado pelos mendigos, pensando
se o que acontecera era verdade ou fruto de sua mente doentia. Ficou a lembrar
de cada detalhe, aguçando o seu desespero, assim como a sensação de que estava,
novamente, cercado. Ergueu a cabeça olhando ao redor.
—
Onde estão os mendigos? — começou a se perguntar, apavorado. — Lídia?
A
praça estava silenciosa. As luzes que antes estavam acessas, todas apagadas. A
escuridão predominava. Theo ergueu-se e examinou cada canto, nada. Sentia seu
corpo estranho, arrepiado, mas o medo havia ido embora. Então viu os faróis do
carro que, provavelmente, era de Lídia. Estava grato por ter uma amiga tão
dedicada.
Lídia
deteve o carro chamando-o com um gesto de mão.
Theo
correu naquela direção com um sorriso grato, acenando satisfeito.
Então,
tudo aconteceu.
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